O serviço público de educação é um pilar essencial e imprescindível de uma democracia que, por definição, garanta a igualdade de oportunidades e o desenvolvimento integral de uma sociedade moderna.

«O crepúsculo do dever» de Gilles Lipovetsky

Escrito em 1992 em França, O Crepúsculo do Dever é um livro que se destina primariamente à análise social, análise essa feita em inúmeras vertentes, que expõem e exploram até ao mais ínfimo pormenor todos os “podres” e temas recorrentes nas sociedades de hoje e nas de então, como a sexualidade, importância do desporto na valorização do indivíduo (que o autor designa na página 129 por “egobuilding”) e como fenómeno de massas, o descrédito no catolicismo e no papel da religião em geral, ecologia e preocupação com o bem-estar do planeta, e, claro, a política. Estabelecendo comparações com tempos passados (quer através dos pontos de vista do autor, quer com base de fundamentação de ideias em obras que o mesmo consultou previamente e que estão referidas no decorrer do livro) e mostrando as mudanças e/ou regressões registadas, principalmente no que ao domínio dos valores diz respeito, torna-se curioso constatar que, quase vinte anos passados da conclusão deste livro, mal necessitamos de estabelecer comparações em relação às sociedades do Século XXI, pois em abono da verdade, o status quo de muitos dos problemas registados nos nossos dias, e já existentes à data, continua exactamente o mesmo, apenas mascarado com um nível tecnológico muito maior e considerados como factores decorrentes do fenómeno de globalização que atravessamos actualmente, com tudo o que esse processo implica na definição do rumo das sociedades ocidentais. 
Um dos temas que o autor insistentemente expõe neste livro é o primado do individual sobre o colectivo, patente em termos como “qualidade de vida” e que, no ponto de vista de Gilles Lipovetsky, influem grandemente no que à ética e moral (conceitos que também mudam de significado com os tempos) diz respeito, não faltando exemplos que corroborem a posição do autor, como as referências ao recuo do ideal altruísta (página 148), filantropia (página 153) e voluntariado (página 161). É fácil perceber que as sociedades actuais caminham a passos largos para uma despreocupação relativa ao bem-estar do colectivo, e mesmo que o indivíduo tenha uma noção de bem-estar social mais abrangente, essa mesma noção é largamente acompanhada de uma grande componente egocêntrica, que deixe esse mesmo indivíduo numa posição de destaque face à maioria. É esta competição desenfreada, que visa “eliminar os adversários” e que constitui uma verdadeira escalada pela procura de notoriedade, seja dentro do grupo de trabalhadores de uma empresa, nas relações pessoais ou mesmo nos ideais de cidadania, que o autor analisa, a meu ver, de forma bastante competente, mostrando as inúmeras áreas em que esta tendência individualista influi largamente. Infelizmente, o autor expõe tanto esta temática, que o livro acaba por se perder um pouco na sua intenção de analisar a sociedade, parecendo não passar de uma tese sobre o individualismo no decorrer dos seus capítulos. 
Se bem que “ensombrados” pelo tema do individualismo já referido, o livro mantém a sua pertinência ao referir problemáticas tão comuns nos dias de hoje, e que constituem ainda e sempre os tabus já mais que habituais, como sendo o aborto, a droga, a eutanásia e as questões sexuais e raciais. Constatamos mesmo sem recurso ao livro que as evoluções registadas em termos de mentalidade são bastante tímidas, e que sempre que estes temas vêm a público, fazem-se quase automaticamente acompanhar de uma série de mitos e polémicas, tão nocivas em sociedades que se pretendem inclusivas e “open-minded”, onde as questões do percurso de vida e protecção da privacidade são sempre bastante fracturantes e entram em aparente contradição com esta generalização de hábitos, pensamentos e atitudes que a Globalização (ou Ocidentalização?) tanto proclama. 
A temática do patriotismo também ocupa aqui o seu papel de importância. Conceito também ele em mutação, também em choque com esta tendência de despreocupação social, e muito bem apelidada pelo autor de “Nacionalismo sem Patriotas” (na página 220), apercebemo-nos durante a leitura de que os jovens são pouco dados a “demonstrações de afecto” aos seus países. E não precisamos de voltar mais do que seis anos atrás para termos um bom exemplo real de um patriotismo adormecido que subitamente desperta, vaga que o Euro 2004 competentemente desencadeou. Com efeito, e excluindo estes fenómenos temporários de nacionalismo exacerbado, damos de caras com um inquérito realizado em França e datado de 1988 (página 222), que revela algumas conclusões no mínimo surpreendentes, como o facto de 1 em cada 2 jovens não achar escandaloso pisar a bandeira nacional. Não querendo aqui assumir uma tomada de posição, faço minhas as palavras de Lipovetsky quando este afirma que “a mitologia nacionalista está cansada”(página 222). De facto, só quando o nacionalismo se torna útil e vantajoso, nomeadamente em questões económicas, é que as sociedades se lembram dos respectivos “berços” e, por momentos, deixam de lado o debate sobre a conjuntura das suas nações, tomando a forma de ataque aos Governos e ao Estado, muitas vezes a respeito da incompetência e/ou má acção dos mesmos. É neste contexto que as questões da cidadania ganham também novos contornos. Fenómenos como as taxas de abstenção crescentes sempre que se procedem a novas eleições, a desvalorização do voto como elemento vital para o rumo futuro da governação de um país, e a consciencialização que um bom cidadão é todo aquele que se limita a pagar os seus impostos sem possuir qualquer tipo de dívidas ao fisco traduzem uma sociedade cada vez mais focada nos direitos, relegando os deveres para um plano cada vez mais secundário. Convém referir que os exemplos atrás apontados são considerações pessoais do autor, e que, muito resumidamente, traduzem a regressão de valores a que assistimos actualmente. 
Em suma, estas são as principais temáticas deste livro, que, embora tenha dado gosto em ler e seja efectivamente muito completo e factual, não ocultando qualquer defeito apontado às sociedades contemporâneas, não deixa de ser demasiado denso e repetitivo em conteúdo, valendo-se do recurso à modernidade como chamariz para os leitores, bem como demasiado “estatístico” (socorre-se frequentemente de percentagens e resultados de inquéritos para comprovar os factos referidos). São 320 páginas de conteúdos pouco diversificados, alguns até desnecessários para a análise em questão (realço o exemplo da importância do banho e de este ser encarado como uma obrigação ou prazer), e que poderiam ser facilmente discutidos e debatidos no contexto de uma aula normal. 
Joel Joaquim
(Aluno de Comunicação Social do
Instituto Politécnico de Setúbal)
 

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